Dor invisível: como Tati Machado, 44 mil mães a cada ano perdem o bebê na gestação ou logo após do nascimento
18/05/2025
(Foto: Reprodução) Projeto de lei aprovado no Senado assegura direitos a famílias que precisam aprender a lidar com o luto, na maioria das vezes, sem o apoio da sociedade e de profissionais de saúde. Texto ainda aguarda sanção presidencial. A dor invisível: o luto de família que perderam seus bebês
A apresentadora Tati Machado perdeu o bebê na reta final da gestação, com 33 semanas. Por ano, mais de 44 mil mães no Brasil têm seus sonhos de viver a maternidade interrompidos ainda durante a gravidez, como Tati, ou no primeiro mês de vida do bebê, e passam a ter que aprender a lidar com o luto, na maioria das vezes, sem o apoio da sociedade e de profissionais de saúde.
Uma das coordenadoras do Instituto do Luto Parental (ILP), Damiana Angrimani, conta que, com quase dez semanas de gestação, ouviu da médica que seu bebê não tinha batimentos cardíacos. Ela foi então encaminhada para uma sala de espera do laboratório de medicina fetal, repleto de grávidas, e recebeu o laudo de uma enfermeira que lhe desejou "parabéns".
“Acho que o protocolo na entrega do papel inclui dizer parabéns para todos. Eu lembro que aquilo me bateu tão mal. Meu marido ficou muito irritado. E depois disso foi uma sucessão de atendimentos ruins. E o final deles foi a minha terapeuta da época dizer: ‘Eu não entendo por que você chora tanto. Era só um combinado genético, não era um bebê’”.
Damiana e Tati estão entre as milhares de mães que, a cada ano, sofrem com a notícia de um óbito fetal (até 20 semanas de gestação), perda gestacional (após 20 semanas de gestação) ou óbito neonatal (quando o recém-nascido morre até o 28° dia de vida).
Mas a sociedade pode tornar esta dor menos invisível. No início de abril, o plenário do Senado aprovou um projeto de lei que assegura direitos para mulheres e familiares que enfrentam perda de bebê recém-nascido ou perda gestacional espontânea.
O texto aprovado - relatado pela senadora Augusta Brito (PT-CE) - foi uma junção do projeto da deputada Geovânia de Sá (PSDB-SC) com o texto construído pelo então deputado federal Alexandre Padilha em 2019 (hoje ministro da Saúde), em parceria com instituições que atuam pela causa. O PL segue agora para a sanção presidencial.
Tiemi Ogassawara com sua filha Zoe, já sem vida, em seus braços, junto com a avó
Arquivo Pessoal
Abaixo, nesta reportagem você vai ver:
O que o projeto de lei propõe
Os direitos atuais das famílias em casos de perdas
Dados numéricos das perdas gestacionais e óbitos neonatais no Brasil e no mundo
Os relatos de mães enlutadas que se tornaram ativistas
Quanto tempo de licença a mulher tem direito após uma perda gestacional?
A importância do registro de memórias do bebê
A cultura do luto no Brasil
O direito ao luto e aos rituais de despedida
O luto dos profissionais de saúde
1 - O que o projeto de lei propõe
O objetivo do PL 1.640/2022 é oferecer suporte psicossocial e fortalecer a assistência nos serviços de saúde, com atendimento mais humanizado às famílias. Entre as propostas, estão:
Alas reservadas em hospitais para mães em luto
Apoio psicológico especializado
Exames para investigar as causas das perdas
Acompanhamento na próxima gestação
Capacitação específica dos profissionais que trabalham em maternidades
Direito a sepultamento ou cremação do feto ou do bebê nascido morto, sempre que possível, com participação dos familiares na elaboração do ritual
Permissão de solicitação de declaração com nome do natimorto, data e local do parto e, se possível, registro da impressão digital e do pé
Direito a um acompanhante no parto de natimorto e assistência social para trâmites legais
Permissão da doação de leite da mãe, desde que avaliada pelo responsável pelo banco de leite humano ou posto de coleta
Institucionalizar o mês de outubro como o Mês do Luto Gestacional, Neonatal e Infantil no Brasil.
“A aprovação do PL representa um momento histórico. Trata-se de uma lei que garante acolhimento e cuidado especial nas maternidades para mães e pais que perdem o filho durante ou antes do parto. O texto assegura o direito de registrar o nome, emitir certidão de óbito e estabelece diretrizes para um atendimento mais humanizado”, afirma Padilha.
O que dizer e o que não dizer para quem está em fase de luto gestacional ou neonatal?
2 - Os direitos atuais das famílias em casos de perdas
Mesmo antes da sanção presidencial do PL que assegura mais direitos às famílias enlutadas, a maioria da população não tem conhecimento de seus direitos atuais. Entre eles, está o direito ao sepultamento e a rituais de despedida.
A lei determina que bebês falecidos com 20 semanas ou idade gestacional superior, peso de 500g ou mais, 25cm centímetros de estatura ou mais podem ser levados pelos pais para o sepultamento.
Os bebês com menor idade gestacional, peso e estatura ficam no hospital para estudos científicos.
Com o parecer do Cremesp, de número 197356, de 2020, nos casos de óbito precoce (menos de 20 semanas, peso menor que 500gr e estatura menos que 25cm) se houver pedido familiar e atestado do obstetra, os pais podem levar o corpo do bebê.
“O sepultamento, cremação ou velório fazem parte dos rituais de despedida e nos ajudam também na elaboração do luto, no entendimento do ciclo vida morte. Por mais doloroso que seja, é muito importante que esse direito seja garantido, e que os pais tenham autonomia de escolher participar ou não desse momento”, destaca Ligia Aquino, fundadora do Instituto do Luto Parental.
A definição do tipo de perda permite entender os direitos das famílias, como a emissão da Declaração de Óbito (DO) e o acesso à assistência médica e psicológica.
Além da idade gestacional, o peso e a estatura do feto também são critérios para a emissão da DO.
22 semanas ou mais e 500g ou mais e estatura de 25cm ou mais: a perda é considerada um óbito fetal e exige a emissão da Declaração de Óbito (DO)
Menos de 22 semanas: a perda é considerada abortamento espontâneo e, embora a DO seja facultativa, a família pode optar por realizar o sepultamento.
Do nascimento até 28 dia de vida: óbito neonatal
O termo luto perinatal é usado para perdas de 22 semanas gestação até 28 dias de vida. Mas instituições usam o termo luto parental para as perdas em qualquer fase da vida.
3 - Dados numéricos das perdas gestacionais e óbitos neonatais no Brasil e no mundo
Dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) indicam que mais de 5 milhões de crianças morrem anualmente no mundo, sendo quase metade delas no primeiro mês de vida.
A mortalidade perinatal é uma questão crítica que foi incluída na agenda global dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU, ressaltando sua relevância e urgência.
No Brasil, em 2024, foram registrados 24.237 óbitos fetais e 20.007 óbitos de bebês com até 28 dias de vida. No mesmo período, o país contabilizou 2.380.450 nascimentos.
As principais causas de óbito na primeira semana de vida incluem fatores relacionados à saúde materna, prematuridade, asfixia/hipóxia, infecções perinatais e afecções respiratórias.
4 - Os relatos de mães enlutadas que se tornaram ativistas pela humanização do luto perinatal
O g1 conversou com mães e pais enlutados e profissionais de saúde para entender como a morte de um bebê, em qualquer fase de seu desenvolvimento, afeta essas pessoas e como a sociedade pode lidar com esta situação e aprender a acolher pais e mães.
Instituições, coletivos e ONGs têm se dedicado a humanização do luto, acolhendo e apoiando famílias enlutadas pela perda de um filho no período gestacional e neonatal e sensibilizando a sociedade sobre a existência desse luto, para torná-lo visível e reconhecível, por meio de capacitação profissional e políticas públicas.
Mães enlutadas durante roda de acolhimento promovida pelo Instituto do Luto Parental em São Paulo
ILP
Angrimani lembra que, quando foi no hospital fazer a curetagem (procedimento médico para remover restos ovulares após um aborto), ficou na ala da maternidade.
“Havia um berçário na frente do meu quarto cheio de bebês. Todos os quartos tinham enfeitinhos de bebê, menos o meu. Todas essas micro e macro violências institucionais e sociais eu fui sentindo muito na pele. Eu sabia que havia um desconforto, mas não entendia direito.”
Já a ONG Amada Helena enfatiza a relevância de abordar o luto como uma questão social. Em sua cartilha de orientações, a equipe afirma que “o luto não é apenas um processo psicológico, mas uma questão social que requer atenção”. A maneira como a sociedade percebe e lida com a morte é fundamental para que os pais possam atravessar esse processo de forma saudável, evitando o desenvolvimento de lutos complexos, destaca a entidade.
“Com o avanço da medicina, entramos em uma fantasia de onipotência, acreditando que temos controle sobre todos os processos, inclusive a gestação. No entanto, entre quatro e 25 semanas, não temos esse controle. Quando ocorre a perda, há uma queda dessa onipotência. E, como sociedade, não lidamos bem com essas quedas”, acrescenta Angrimani.
Tiemi Ogassawara, mãe da Zoe, conta que recebeu a notícia que sua filha não sobreviveria após o parto de uma forma extremamente objetiva e sem muita explicação.
“Veio uma médica da medicina fetal, pôs o aparelho de ultrassom na minha barriga e ficou lá um tempo sem falar muito com a gente. Foi um desespero. Ela não falava. Eu não sabia o que estava acontecendo. E aí ela falou: olha, esse bebê não tem rim, essa gestação não vai pra frente. Eu vou chamar o médico pra vir falar com vocês. E saiu da sala. E aí chorei umas 3 horas e ninguém entrou no quarto. Ninguém veio para ver se a gente estava bem, nada.”, relembra Tiemi.
Ligia Aquino, fundadora do Instituto do Luto Parental, relembra que há 10 anos, quando estava com 40 semanas de gestação, recebeu a notícia de que sua filha Laura estava sem vida, quando estava fazendo a ultrassom no hospital, antes do parto. Ela relata que deram a notícia de forma muito inesperada na entrada do hospital.
“Eles chamam de check-in, né. No hospital, você chega passa nessa parte de pré-atendimento e eu lembro que ela (técnica do ultrassom) falou: “não tem batimentos cardíacos”. E aí essa frase é muito impactante, porque se trata do seu filho, se trata de uma vida de um bebê.”
Ligia Aquino, fundadora do Instituto do Luto Parental, grávida de Laura, abraçada pelo marido
Arquivo pessoal
5 - Quanto tempo de licença a mulher tem direito após uma perda gestacional?
Uma vez ocorrido o parto, com ou sem vida da criança (natimorto), há o direito à percepção da licença-maternidade.
Em casos de perda gestacional acima de 20 semanas, mulheres que trabalham no regime trabalhista CLT, atualmente têm direito a 4 meses de licença e algumas empresas permitem um afastamento de 6 meses.
Mas trabalhadoras da área militar e as que não são celetistas têm direito a afastamento de apenas um mês, independente da quantidade de semanas de gestação.
Quando a perda ocorre com menos de 20 semanas de gestação, a mulher tem direito a poucos dias de afastamento.
De acordo com a IN 128/2022 do INSS, “em caso de aborto não criminoso, comprovado mediante atestado médico, a segurada terá direito ao salário-maternidade correspondente a duas semanas, a partir da data do aborto” (art 358, § 1º).
De acordo com o Ministério do Trabalho, a licença-paternidade atualmente, no Brasil está regulada apenas pela Constituição Federal, no art. 7º, XIX, Ato Constitucional das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 10, §1º. É este segundo dispositivo que concede cinco dias de licença paternidade, a serem contados em dias corridos, salvo a existência de normas coletivas mais favoráveis ou ainda, no caso de a empresa empregadora ter aderido ao Programa Empresa Cidadã.
Contudo, no Brasil não há regulamentação para o início da licença-paternidade, de maneira que, ela é sempre concedida imediatamente após o nascimento. O que resta é a licença por morte de descendente, que na CLT é prevista por 3 dias corridos para a maior parte das categorias.
Não há previsão na legislação acerca de licença-paternidade em caso de aborto não criminoso.
6 - A importância do registro de memórias
A partir dos estudos de luto gestacional e neonatal, percebeu-se que a existência de memórias do bebê através de fotos torna o processo de luto um pouco menos doloroso, pois é um registro do único momento em que a família pôde estar com seu filho.
Apesar dessa vontade do registro não existir no momento do óbito, por ser um momento confuso e de muita dor, a vontade de ter memórias do filho vai surgindo com o tempo e, por isso, o registro é algo importante. A criação de memórias através de fotos, roupas do bebê, textos e vídeos ajudam no ‘processo de materialização dessa maternidade tão atípica de quando não temos o bebê no colo’, reconhece o Instituto do Luto Parental.
As memórias de Laura, filha de Ligia Aquino, fundadora do Instituto do Luto Parental
Arquivo pessoal
Ariela Domingues, enfermeira de uma UTI neonatal de um hospital de alta complexidade, relata a sua prática em momentos de óbito de um bebê:
“No momento do óbito, a gente tem que tentar fazer com que essa família tenha ferramentas para conseguir viver esse luto, validar a existência desse bebê. (...) Então a gente vestir o bebê, tentar reunir o máximo de registros daquele momento, tirar foto de cada detalhe do corpinho do bebê, tirar foto dos pais com o bebê, a roupinha que ele vai vestir naquele momento, para que os pais possam guardar como recordação. Para eles terem algo palpável da vida daquele bebê, como a pulseirinha de identificação. Qualquer coisa mínima vai servir de ferramenta para validar a existência daquele bebê, coisa que às vezes aqueles pais não vão conseguir lá fora, na sociedade.”
7 - A cultura do luto no Brasil
A perda de um filho é considerada por especialistas uma das experiências mais desafiadoras para o ser humano. A psicóloga Cristine Gabrielle da Costa dos Reis, que desenvolveu sua dissertação sobre o tema na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), observa que “quando uma criança morre, parte do self dos pais também morre”. Essa conexão profunda entre pais e filhos intensifica a dor, e a falta de suporte social pode agravar ainda mais essa situação.
O debate acerca dos processos de morte, em especial da morte de um bebê, são fundamentais para que o tema não seja mais um tabu e possa letrar a sociedade para vivenciar este momento inevitável, de forma digna e respeitosa.
Gabriel Messias, pai do Luiz, reflete sobre a cultura de elaboração do luto no Brasil. É comum avós, tias e mães que passaram por essa experiência, nunca terem conversado sobre isso com outras pessoas. A solidão desta experiência invisibilizou milhões de histórias no tempo.
Ele conta que, no Brasil, a morte de crianças era algo muito comum, principalmente no Nordeste há algumas décadas. Esperava-se inclusive uma semana para dar nome, por não saberem se ela iria vingar. “Como essa cultura de elaboração de luto de bebês e crianças foi feita? Como é que isso foi elaborado e tratado? Não existe”, comenta.
8 - O direito ao luto e aos rituais de despedida
A experiência do luto é influenciada por diversos fatores, como gênero, raça, orientação sexual, classe social e religião. Essas diferenças tornam o processo desigual para as famílias que enfrentam essa experiência.
E a ritualização do luto acaba sendo um privilégio de algumas pessoas em determinadas condições, que têm acesso a espaços onde circulam informações sobre a humanização do luto.
Tiemi Ogassawara relembra que sua decisão de realizar o ritual do velório e cremação se deu no momento em que viu a sua filha em um local no hospital que ela descreve como se fosse um necrotério: “era um lugar frio, ela sozinha, no subsolo do hospital”.
Ela relata emocionada o que considera ser “a pior cena” para ela: “Eu cheguei lá e a pessoa que acompanhou. A gente abriu uma portinha pequena, parecia uma geladeirinha, e tirou o pacotinho pequenininho. Acho que foi a pior cena, que não vai sair nunca da minha cabeça. E quando eu vi a carinha dela, eu tive a certeza a que de eu não queria que ninguém conhecesse ela lá, sabe?”
Tiemi realizou o ritual de despedida da Zoe em um velório, onde família e amigos puderam também se despedir de sua filha.
9 - O luto dos profissionais de saúde
Instituições destacam também que a experiência de perda de um bebê vivida por profissionais que assistem às famílias também deve ser considerada.
A pressão sobre enfermeiros e médicos pode gerar sentimentos de culpa e vergonha, tornando esse tema ainda mais tabu.
A médica obstetra Tatiana Boute, em seu percurso profissional, percebeu que, em geral, os médicos enxergam como um fracasso pessoal a morte de um bebê.
“Nós médicos, somos treinados para solucionar problemas, resolver tudo. E a morte é muitas vezes encarada como um fracasso do meu atendimento. ‘Eu não fui capaz de te dar um atendimento tal que o seu bebê não morresse’”, revela Tatiana.
Angrimani complementa: “Precisamos ter um olhar cuidadoso para o profissional, pois às vezes o vemos como uma máquina. É difícil sentir, mas é sentindo que nos aproximamos e conseguimos entender como ajudar o outro”.
Ela acredita que para tornar o luto mais humanizado é preciso principalmente que as instituições não vejam a morte de um bebê como um erro, um fracasso, em que há culpados, mas sim como algo natural. Assim, essas instituições vão deixar de se preocupar em esconder o fato e acolher as famílias de forma mais sensível e personalizada.
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